PODERES DA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA
PODER REGULAMENTAR
O poder regulamentar ou, como prefere parte da doutrina, poder
normativo é uma das formas de expressão da função normativa do Poder
Executivo, cabendo a este editar normas complementares à lei para a sua
fiel execução (DI PIETRO, 2011:91). Deve-se notar que o poder
regulamentar não pode ser confundido com o exercício do Poder
Legislativo, mas deve ser considerado com a aplicação da lei aos casos
concretos com o objetivo de atender ao interesse público.
Interessante notar que o Poder Regulamentar é função típica do Poder
Executivo, conferida com exclusividade ao chefe do referido poder. É um
poder de caráter derivado ou secundário, pois decorre da existência da
Lei. Neste sentido, o Ministro Dias Tóffoli assim se manifesta:
A atuação administrativa com esse fundamento é legítima quando está
restrita a expedir normas complementares à ordem jurídico-formal
vigente; em outras palavras, quando
configura exercício de função típica do Poder Executivo, qual seja, a execução das leis. (STF; RMS 27666 / DF; DIAS TOFFOLI; Julgamento: 10/04/2012; Primeira Turma).
No mesmo voto, o Ministro Tóffoli cita ainda José Afonso da Silva:
O poder regulamentar não é poder legislativo, por conseguinte não pode criar normatividade que inove a ordem jurídica.
Seus limites naturais situam-se no âmbito da competência executiva e
administrativa, onde se insere. Ultrapassar esses limites importa em
abuso de poder, usurpação de competências, tornando írrito o regulamento
dele proveniente, e sujeito a sustação pelo Congresso Nacional (art.49,
V).
Doutrinariamente, pelo menos, o regulamento assemelha-se à lei em seu
caráter geral, impessoal e permanente; mas dela se distingue não só por
ser diferente o órgão que o estabelece, como por ser uma norma jurídica secundária e de categoria inferior à da lei (SILVA, 2007:484) (grifos nossos).
Dentre as competências do Presidente da República, a Constituição
Federal em seu artigo 84, deixa expresso o seu poder normativo, in
verbis:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...)
IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução; (grifos nossos).
Baseado neste artigo, a doutrina define um dos tipos de regulamentos, qual seja: o
regulamento executivo.
Ele possui a função de complementar a lei e justamente por isso não
pode realizar determinações contra legem ou ultra legem, ou seja, não há
inovação na ordem jurídica (DI PIETRO, 2011:91).
Tema relativamente recente ligado ao Poder Regulamentar foi a edição do
Decreto nº 6.488, de 19 de junho de 2008 para disciplinar o art. 306 do
Código Brasileiro de Trânsito com as alterações trazidas pela Lei nº
11.705, de 19 de junho de 2008. In verbis:
Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com
concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis)
decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa
que determine dependência:
Penas
- detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição
de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Parágrafo único. O Poder Executivo federal
estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para
efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo (grifos nossos).
Em atendimento à determinação do parágrafo único, o art. 2º do Decreto nº 6.488, de 19 de junho de 2008, assim dispôs:
Art. 2º Para os fins criminais de que trata o art. 306 da
Lei no 9.503, de 1997 - Código de Trânsito Brasileiro, a equivalência
entre os distintos testes de alcoolemia é a seguinte:
I - exame de sangue: concentração igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue; ou
II - teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro):
concentração de álcool igual ou superior a três décimos de miligrama por
litro de ar expelido dos pulmões.
É um exemplo típico de atuação do chefe do Poder Executivo no exercício
do Poder Regulamentar. Coube ao Decreto, em atendimento à expressa
determinação legal, disciplinar a equivalência entre os testes de
alcoolemia. De fato, o Decreto cumpriu exatamente a disposição legal,
limitando-se a tratar da equivalência entre os testes.
Realizar uma comparação simples entre a lei e o regulamento pode
facilitar a compreensão. Enquanto o regulamento é feito pelo chefe do
Poder Executivo, a lei (em geral) é feita pelo Poder Legislativo. Outro
ponto diferencial está no procedimento para a sua elaboração, enquanto a
lei passa pelo
processo
legislativo com várias etapas, participação ampla e com grande
representatividade, o regulamento é definido diretamente pelo chefe do
executivo.
Gustavo Barchet, ao tratar do tema, ressalta o caráter da exclusividade do poder regulamentar, in verbis:
(...) o poder conferido com exclusividade aos chefes de Poder Executivo para editar atos normativos (...) deve-se ressaltar que o poder regulamentar é indelegável,
conclusão a que se chega pela análise do parágrafo único do art. 84 da
Constituição Federal, que autoriza ao Presidente da República delegar o
exercício de algumas das competências arroladas no mesmo artigo
(BARCHET: 2008,191).
De fato, como não há expressa previsão quanto à possibilidade de
delegação, somente o chefe do Poder Executivo teria esta competência. No
mesmo sentido, por interpretação harmônica, os demais chefes dos
poderes executivos estaduais e municipais também não poderiam delegar
suas competências quanto ao poder regulamentar.
A despeito de tal posicionamento, deve-se ressaltar que diversos
órgãos, entidades e autoridades administrativas possuem competência para
editar
atos administrativos normativos. Marcelo Alexandrino cita alguns exemplos:
(...) competência atribuída aos Ministros de Estado (...) para
“expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos.
(...) Secretaria da Receita Federal do Brasil para a edição de
instruções normativas e a competência das agências reguladoras de um modo geral para edição de resoluções e outros atos de caráter normativo (...) (ALEXANDRINO, 2009:229).
Destaque-se que nestes casos não se trata de poder regulamentar, mas de
poder normativo, que possui um caráter mais amplo, abrangendo a
competência de quaisquer autoridades administrativas na disciplina de
atos administrativos normativos. Ao tratar do poder normativo das
agências reguladoras, José dos Santos Carvalho Filho assim se manifesta:
Ao contrário do que alguns advogam, trata-se do exercício de função administrativa, e não legislativa, ainda que seja genérica sua carga de aplicabilidade. Não
há total inovação na ordem jurídica com a edição dos atos regulatórios
das agências. Na verdade, foram as próprias leis disciplinadoras da
regulação que, como visto, transferiram alguns vetores, de ordem
técnica, para normatização pelas entidades especiais. (FILHO, 2007:8).
Ao lado do regulamento executivo, parte da doutrina define o
regulamento independente ou autônomo,
o qual trata de matérias sobre as quais a lei não disciplinou. Para
esta segunda hipótese, costuma-se citar também o art. 84 da
Constituição, porém o inciso específico neste caso é o VI:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...)
VI - dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;
b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos; (grifos nossos).
Deve-se registrar, porém que na doutrina pátria a matéria é, de fato, dividida em três correntes distintas:
a) O decreto autônomo é possível em qualquer circunstância em que o
administrador tem que disciplinar o que não foi disciplinado pela lei.
Esta corrente é defendida pelo doutrinador Hely Lopes Meirelles
(MEIRELLES, 1997:163).
b) A partir da Emenda Constitucional nº 32/2011 há previsão expressa e
de índole constitucional autorizando a edição de decretos autônomos
(art. 84, VI). Esta corrente é defendida pela Maria Sylvia Zanella Di
Pietro, entre outros doutrinadores (DI PIETRO, 2011:90).
c) Não há que se falar em decreto autônomo. De fato, o decreto será
sempre regulamentar ou complementar à lei (MELLO, 2011:338-339).
Sobre o tema é interessante destacar o caso da ADI 3239/DF cujo objeto é
o Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, que regulamenta o
procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação
e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos de que trata o artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias - ADCT. Embora ainda em debate, o Ministro
Cezar Peluso já apresentou o voto, entendendo que:
(...) a aferição de constitucionalidade dos decretos, na via
da ação direta, só seria vedada quando estes se adstringissem ao papel
secundário de regulamentar normas legais, cuja inobservância ensejasse apenas conflito resolúvel no campo da legalidade. Ocorre que o
caso cuidaria de decreto autônomo, de maneira que o ato normativo
credenciar-se-ia ao controle concentrado de constitucionalidade (Informativo do Supremo Tribunal Federal nº 662) (grifos nossos).
O Ministro defende a existência do decreto autônomo, diferenciando-o do
decreto executivo e, justamente com base neste fundamento, considera o
decreto autônomo passível de controle concentrado, por meio da Ação
Direta de Inconstitucionalidade. De fato, como destacado anteriormente,
nas hipóteses de decreto executivo, por seu caráter secundário, o
Supremo Tribunal Federal vem entendendo que a análise seria de
compatibilidade com a lei e, portanto, de natureza infraconstitucional.
Referências Bibliográficas
ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO, Vicente. (2009),
Direito Administrativo Descomplicado. 17ª. ed. São Paulo: Método.
BARCHET, Gustavo. (2008),
Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Elsevier.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. (2011),
Direito Administrativo. 24ª ed. São Paulo: Editora Atlas.
FILHO, José dos Santos Carvalho. (2007),
Agências Reguladoras e Poder Normativo. Revista Eletrônica de
Direito Administrativo
Econômico (REDAE). Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público.
Disponível em:
. Acesso em 15/11/2012.
MAYER, Luiz Rafael. (1975),
Parecer L-066/1975.
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http://www.agu.gov.br/sistemas/site/PaginasInternas/NormasInternas/AtoDetalhado.aspx?idAto=7555&ID_SITE=>.
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MEIRELES, Hely Lopes. (1997),
Direito administrativo brasileiro. 22ª. ed. São Paulo: Malheiros.
MELLO, Celso Antônio Bandeira. (2009),
Curso de Direito Administrativo. 26ª. ed. São Paulo: Malheiros.
SILVA, José Afonso da. (2007),
Comentário Contextual à Constituição. 3ª. ed. São Paulo: Malheiros.